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Memória: Ex-prefeito conta os bastidores do maior acidente ambiental já ocorrido em Ibiá

Atualizado: 13 de nov. de 2020


O ex-prefeito de Ibiá, Dr. Hugo França, revelou tudo o que aconteceu após o maior acidente ambiental já ocorrido na cidade.


O acidente com uma composição da Ferrovia Centro-Atlântica, ocorrido em outubro de 2003, deixou Ibiá sem água, trazendo vários prejuízos pra cidade.


Leia a seguir o texto, na íntegra, publicado por Hugo França em sua página na rede social Facebook.


“O MILAGROSO ÓLEO PURIFICADOR DO RIO MISERICÓRDIA

No dia 10 de outubro de 2003, uma composição da Ferrovia Centro-Atlântica, mais conhecida pela sigla FCA, percorria os trilhos de um ramal nas margens do Rio Misericórdia, no município de Ibiá, região mineira do Alto Paranaíba. Pouco mais de dez quilômetros acima da estação de captação de água que abastece a cidade, um dos vagões do comboio descarrilou e entornou no rio toda a sua carga de óleo pesado, lubrificante empregado em máquinas de mineração. A empresa responsável pelo desastre, a FCA, é parte do grupo Vale, a maior mineradora do país e na época a 12ª maior do mundo. Com o óleo derramado nas águas do Misericórdia, começa uma história que retrata com perfeição o descaso, a corrupção e a promiscuidade entre Poder Público e interesses privados, conforme práticas do Estado patrimonialista vigentes no Brasil desde 1500.


Os 23 mil habitantes de Ibiá ficaram sem água. Não é uma imensa população, nem Ibiá é uma cidade de primeira grandeza econômica ou política – trata-se apenas de 23 mil seres humanos e do respeito que merecem. Foram necessárias muita pressão e muita cobrança por parte da Prefeitura para que a FCA oferecesse afinal algumas dezenas de caminhões-pipa que – esperava-se – supririam o abastecimento. Verificou-se em seguida que os caminhões pertenciam a uma transportadora de óleo de soja, o que os inviabilizava para o transporte de água potável. Pareceres técnicos indicaram que, se os caminhões sujos de óleo de soja fossem utilizados, todo o sistema de abastecimento de água da cidade – caixas d’água, tubulações, máquinas de bombeamento etc. – estaria comprometido. Diante do protesto do município, por razões tão óbvias, surgiu o primeiro desentendimento. Era como se Ibiá não estivesse cumprindo com a devida humildade o seu recente papel de lixo ambiental. Só uma atuação enfática e intransigente das autoridades municipais conseguiu que a frota da soja fosse substituída.


Esse foi o limitado e precário sistema de abastecimento de água que serviu a cidade até que se concluísse a implantação de um novo sistema. A captação agora seria feita em outro rio, o Quebra-Anzol, distante cinco quilômetros da estação de tratamento.

Enquanto isso, prosseguiam as discussões em torno da questão da responsabilidade pelo ocorrido. Várias vezes acompanhei, ao lado do Promotor Público de Ibiá, Evaris, os trabalhos que tentavam limpar o Rio Misericórdia. Conhecemos então, em diversos trechos do ramal ferroviário onde acontecera o acidente, uma linha em péssimo estado de conservação. No leito do rio, havia muito óleo depositado e os restos de uma grande mortandade de peixes.


A Vale, a mega mineradora, segunda maior empresa brasileira em valor de mercado (abaixo apenas da Petrobrás), que havia nascido estatal no tempo de Getúlio Vargas e que, no tempo de FHC, fora privatizada, mobilizou toda a sua influência para tentar desqualificar o susto que seu trenzinho fantasma provocara em Ibiá. Representantes do governo de Minas, na exaustiva sequência de reuniões em que procurávamos fazer valer os interesses da população atingida, chegaram à quase infantilidade de declarar que o óleo derramado “iria purificar as águas do rio”. O que no início era uma tragédia ia aos poucos se tornando uma farsa. Até policiais militares, cujos conhecimentos da questão ambiental nem sempre são muito refinados, julgaram-se no direito de emitir opiniões, a ponto de um coronel da PM, ligado à Defesa Civil, ser solicitado a não comparecer às reuniões.


A multinacional alimentícia Nestlé, instalada em Ibiá desde os anos 1960 com uma fábrica de leite em pó, foi solidária com a cidade e fiel à tradição de limpeza e ordem do seu país de origem, a Suíça. (Conheci um senhor de Genebra que dizia que a imagem de uma escova devia fazer parte da bandeira do seu país.) De repente, para surpresa de todos, o gerente local da Nestlé mudou de lado e comandou a organização de um grupo de pressão – faziam parte dele até mesmo técnicos da Petrobrás – com a tarefa de influir para que tudo ficasse como estava. Recebi ligações do gabinete do governador Aécio Neves tentando abafar o caso e depois – é quase inacreditável o poder mobilizador da grande mineradora – até do próprio presidente da Nestlé.


Naquele clima de pressão vinda de toda parte, entramos na fase das tentativas de estabelecer um documento chamado Termo de Ajuste de Conduta (TAC). Sob protestos, reivindicamos entre outras compensações obras nas áreas de saúde e educação. E presenciamos a brava atuação de um vereador que se pôs heroicamente contra sua cidade e a favor da Vale. (Esse edil certamente nem imagina a falta que a água faz…)


Usando meios cada vez mais pesados, o lobby da Vale não dava trégua na sua pressão. Certa manhã recebi uma ligação de Paulo Abi-Ackel que, em nome da própria Vale, me convidava para uma reunião a sós. Recusei a estranha condição mas aceitei o encontro, desde que fosse em Ibiá. No dia combinado, Abi-Ackel ainda insistiu para que nos reuníssemos – a sós – em Araxá, onde acabara de pousar. Recusei e reafirmei que o esperava em Ibiá (a menos de uma hora de carro de Araxá), no gabinete do prefeito. Quando o homem da Vale chegou, esperávamos por ele o Promotor Público, Evaristo, o vice-prefeito Olímpio Dias e eu. Descobriu-se naquele momento que a tão esperada reunião só faria sentido se fosse a sós – não sendo, ela durou 3 minutos e o representante da Vale, que viria a ser deputado federal pelo DEM, virou as costas e nos deixou.


Depois da misteriosa missão solitária do Abi-Ackel, mandaram-me um jato executivo do Rio de Janeiro para que me levasse a um jantar com o presidente da FCA; e foi mais um episódio de assédio ao mesmo tempo indecoroso e malsucedido. Dias depois, nova reunião em Belo Horizonte, com a presença de todos que podiam ajudar a Vale a calar a boca do teimoso prefeito de Ibiá. Tudo isso naturalmente com muita elegância, uma elegância bem tucana, sempre me levando e trazendo de jato executivo. (Aumentei bastante minhas horas de voo nessa época, mas isso de pouco me vale).


Nesse encontro em Belo Horizonte, em vista do argumento fantástico de que “o óleo purifica”, exibi para a seleta plateia tucana um vídeo em que o Promotor e eu, mergulhados nas águas recém-purificadas do Rio Misericórdia, mostrávamos como a matéria negra e pegajosa nos cobria e como seria longo e penoso o caminho até a purificação completa do Misericórdia. Considerando minha incompreensão do fenômeno da purificação pelo óleo lubrificante pesado, a reunião foi imediatamente encerrada. E eu fui devolvido a Ibiá – de jatinho, como é de bom-tom nessas ocasiões.

Ao fim, diversas obras acabaram realizadas em decorrência do TAC, documento arrancado contra uma insidiosa pressão. A captação do Rio Quebra-Anzol, a principal e mais urgente entre elas, continua abastecendo de água limpa e sem riscos a comunidade de Ibiá, até hoje. Tudo o que conseguimos se deve à insistência e teimosia, enfrentando um poder corruptor quase inimaginável. Esta história do óleo purificador do Rio Misericórdia poderia se chamar simplesmente Brasil.”

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